ANTONIO CÍCERO — nasceu no Rio de Janeiro em 1945. Poeta e ensaísta, ele é autor, entre outras coisas, dos livros de poemas Guardar (Rio de Janeiro: Record, 1996), contemplado com o Prêmio Nestlé de Literatura, e A cidade e os livros (Rio de Janeiro: Record, 1996), assim como do ensaio filosófico O mundo desde o fim (Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995) e do livro de ensaios sobre poesia e arte Finalidades sem fim (São Paulo: Companhia das Letras, 2005). Junto com o poeta Waly Salomão, editou o livro de ensaios O relativismo enquanto visão do mundo (Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1994) e, em parceria com o poeta Eucanaã Ferraz, organizou a Nova antologia poética de Vinícius de Moraes (São Paulo: Companhia das Letras, 2003). Além disso, é autor de diversas letras de música, contando como parceiros e intérpretes, além de sua irmã, Marina Lima, Adriana Calcanhotto e João Bosco entre outros.
PROVA
© ANTONIO CÍCERO
Traçada em vermelho sangue, a nota, sob
o triângulo retângulo formado
por uma dobra ao canto superior
direito da folha de papel almaço
pautado que suportara aquela prova
final de matemática, reprovava-o.
Justa recompensa para quem em toda
aula refolhando-se em si mesmo, sáfaro,
ensimesmado e contudo alienado
de si, não reconhece jamais a imagem
pura que dele o duro espelho cifrado
da matemática, ao refletir, refrange.
Distrai-se a ouvir sirenes, risos de moças
lá longe, lotações, bondes, bicicletas
a fugir da escola rumo a nebulosas
destinações. Vê que esqueceu a caneta.
Acha um toco de lápis que com os dentes
e as unhas aponta e, surdo para leis
que alguém que não ele mesmo delibere –
gênio, deus, demônio, anjo, monstro ou rei –,
debruça-se em seu caderno a rabiscar
quiçá uma gramática especulativa
ou uma característica universal
excogitada por via negativa
e abstrusa, e acintosamente descura
das matérias do curso e dos professores
e alunos que o cercam e jamais capturam.
A sineta toca. Pelos corredores
pensa no pai, na mãe, na avó, no vexame
e na decepção de todos. Seu fastio
é enorme: despreza a vida e a gravidade
com que a encaram. Pondera o suicídio
e se sente mais leve. Pode atirar-se
do terraço do prédio do consultório
do seu dentista, alto sobre a cidade.
Fora da escola toma um sorvete e um ônibus
até o ponto final, no centro. Caminha
até o edifício, pega o elevador
até o último andar, depois ainda
galga um lance de escadas e alcança ao pôr-
do-sol a cidade alâmbar a seus pés.
Decide escrever uma carta ou uma nota
no próprio papel da prova, mas cadê
o toco de lápis? Largara-o na escola.
Resolve deixar para alguma outra hora
o suicídio. Dobra o papel, desdobra,
dobra e o solta a dar voltas, revoltas, voltas
acima de todas as coisas, gaivota.
1 Comentários:
Bonito demais! Falar sobre Antonio Cícero intimida! Talento , sensibilidade e muito mais...
Beijo
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